tumimanda

2025

Cadu, nem sei se devia estar te mandando essa mensagem, mas acho que a ocasião é boa. Tu acredita que a bisa vai fazer cem anos? A velha é um colosso! Parece que o tempo dela não passa, daqui a pouco geral tá morto e ela é a única que resta balançando aquela cadeira eterna no quintal, fazendo arte, trepando em caixote pra pegar pitanga. Um dia o Marcos saiu correndo pra fazer ela descer e no meio do caminho tomou um belo de um tombo e quem acabou levando bronca foi ele kskakasksakak. Lembra como em toda festa alguém caía? Isso não mudou até hoje. Muita coisa lá não mudou na verdade. Você que não vem há tanto tempo não deve ter noção.

A propósito, e sua vida, como vai? Nós dois somos reservados demais nas redes pra satisfazer curiosidades, tenho duas fotos de sete anos atrás e você nenhuma rs. Será que rola tu aparecer lá na bisa no sábado? Pra gente botar o papo em dia mesmo. Super entendo se não puder, mas pensa com carinho, por favor. Talvez a gente não tenha mais tanto tempo pra oportunidades assim.

A primeira gota cai na clareira nascente no topo da cabeça de Cadu assim que ele começa a subir a ruela da vila da casa da bisavó, fazendo convergir a situação atual e duas das grandes preocupações recentes, a careca e a família, em uma mistura caótica: a careca pegando chuva, a família pegando chuva, o encontro com a família na chuva, a família ridicularizando ou ironizando tanto a careca quanto a chegada junto com a chuva. À primeira gota se seguem outras igualmente gordas que em segundos o deixam ensopado e o obrigam a correr na ruela como se fosse uma criança. Na verdade, repara com nostalgia mordaz, ao subir essa ruela pela última vez há trinta e dois anos ele era de fato uma criança que também deve ter corrido (por um motivo melhor, supõe, ou provavelmente por motivo nenhum), porque sempre subia assim ao chegar com a mãe ou voltar das brincadeiras na rua com os primos. Essas e outras corridas ocasionavam quedas que lhe ralaram os joelhos e desenharam neles dois mosaicos de cicatrizes agora tenuemente visíveis por trás da água, observados de relance enquanto monitora o chão tentando evitar tropeços, num gesto de precaução que talvez seja a melhor evidência de que é de fato um adulto e o tempo, é claro, não voltou. Mas o tempo não precisa voltar para alguém continuar estabanado, e pior, cada vez mais míope, com os óculos cada vez mais úmidos, turvos, inúteis, o que explica os desequilíbrios e quase quedas a despeito de tanto cuidado. Ao fim da minijornada, ofegante e encharcado como um nadador, praticamente todo curvado para baixo como se procurasse algo, com as costas fazendo quase um U, Cadu alcança o portão e começa a viver o momento tão antecipado nos últimos anos e planejado nos últimos dias.

É o terror do ansioso: as circunstâncias eliminarem qualquer possibilidade dos eventos se darem como imaginado. De São Conrado a Sargento Roncalli por uma hora e sete minutos, tentando abstrair o papo despropositado do motorista do InDrive (corrida boa, mas que lugarzinho, hein? o senhor é morador ou visitante? eu traçava uma novinha por ali e um dia precisei me jogar de cara na lama no meio de um tiroteio), Cadu arquitetou ações e reações iniciais a depender de vários fatores: ordem dos encontros, graus de receptividade nos cumprimentos, graus de embriaguez, Talita guiá-lo ou não, Talita ter avisado ou não da possível presença do primo do passado. Ele ergue o corpo, se volta para o portão aberto e se detém observando o ambiente de que logo vai participar. Mesas, cadeiras e alimentos são transferidos às pressas do quintal para dentro de casa. Faz-se o possível para proteger objetos e corpos da água. As pessoas estão desesperadas. Mas é um desespero divertido. Os olhares trocados, mesmo os mais desconsolados, irradiam sarcasmo, há muito sarro sendo tirado, Cadu percebe mesmo sem distinguir qualquer diálogo, tanto pelo que depreende dos semblantes quanto pelo que julga recordar. Talvez esse aspecto, o tom insistente de chacota, acentuado sobretudo nas pequenas desgraças, seja o predominante em seu déjà vu, mais do que o cenário com a terra batida cheirando a chuva, mato alto, paredes amarelas descascadas, mesas de plástico brancas cobertas com panos azuis e jarrinhos de hortências artificiais, roupas em varais de fios negros rompendo o caminho por cima, brinquedos surrados rompendo por baixo – visão toda aliás meio ordinária. Ele se perde na observação até emergir a consciência de si mesmo e da estranheza da própria figura ali estática, alta, apalermada e sem disposição para ajudar. Ao mesmo tempo, uma menina de uns seis anos que berrava e corria mudando de direção feito uma mosca, extasiada pela desordem, é a primeira a percebê-lo. Dirige-se a ele intrépida, interrompe-se logo antes do esbarrão, levanta o pescoço como se procurasse o céu, examina-o com os olhos apertados e esboça um sorrisinho banguela antes de dizer:

– Você parece o meu pai.

E sem dá-lo chance de falar qualquer coisa, vira-se para o quintal e grita:

– Esse moço não parece o papai?

Assim boa parte da família se dá conta de sua presença, desviando as atenções das tarefas urgentes e tentando associar a feição inusitada com alguma habitual, os instintos decidindo se devem se preocupar pela integridade da menina (ali tão perto do estranho!) e de si mesmos. Ele olha a família e a família o olha e não reconhece ninguém e não se sente de modo algum reconhecido, fazendo evaporar o sentido que tentou incumbir ao menos a esse início de visita, seu desafio de pertencimento, a frase soberba sou vocês ou a ligeiramente mais humilde ainda posso ser vocês que lhe ocorreram há alguns dias e o encheram de uma satisfação tão boba, quase censurável, agora eliminada. Agora ele entende a futilidade de qualquer chamada ao confronto: tudo deve ser por ele recuperado ou criado do zero, a começar pelas identidades. Uma mulher muito gorda de cabelos ruivos desbotados segurando uma panela de pressão avança três passos e pergunta:

– Pois não?

– Sou o Cadu.

– Cadu?

– Cadu, o primo. A Talita me chamou.

E, recriminando-se por não ter dado logo a informação mais útil, na verdade a única que lhe credencia a presença, adiciona:

– Filho da Edineia.

– Nossa. Cadu. Uau. Quanto tempo.

As duas últimas palavras, essas sim foram antecipadas nos devaneios. As preocupações se dissolvem dos rostos, dando lugar a perplexidades mais leves, e o trabalho é retomado, num ritmo não tão aflito quanto antes. Só a mulher ruiva abandona a panela na terra molhada, corre até o portão e estende a mão direita num gesto que se inicia com aspecto de cumprimento, mas se revela um puxão. Com a outra mão, puxa também a menina.

– Vamos sair dessa chuva.

Ao atravessarem o quintal, Cadu retribui alguns ois, koés, falaês, belezas, joinhas, sobretudo joinhas. A família parece menor do que na memória. Segue sem reconhecer ninguém. Para ele não há miradas de desgraça alegre, só neutralidades confusas que contrastam com as firmezas das decisões sendo tomadas a todo instante – tampar panelas, tigelas para cá, bolsas para lá. A travessia do quintal é ainda mais desafiadora que a da ruela. Agora não corre, mas também não se autopropulsiona e portanto escorrega mais, esbarra e se apoia, quase derruba, sente-se impotente, pretende se impor, deixar de ser carregado, não lhe agrada nem um pouco a ideia de ser carga, mas não há o que fazer. Entram finalmente na casa pela cozinha, um espaço quente e estreito que não se mostra preparado para o despejo às pressas de pratos, panelas, vasilhas e copos amontoados em cima da pequena mesa de madeira e do fogão de quatro bocas.

– Sou a Adriana, lembra de mim?

Adriana, filha da tia Regina, prima uma geração acima (uns cinco anos mais velha?), sempre de minissaias verde exército (por que verde exército?), adolescente vaidosa e chatinha que detestava se misturar com os pequenos e fazia questão de manifestar indiferença por Cadu e em menor grau por todas as crianças e em ainda menor grau por todas as pessoas, à medida que é possível fazer questão da indiferença, necessitar atestá-la com a expressão constante e genérica de um enfado que tinha tudo de deliberado e não costumava ofender nem entristecer justamente por ser tão constante, tão genérico. Apesar de às vezes ter ofendido e entristecido um pouquinho sim, ele imagina. Tudo agora ele imagina e pode ser só isso, imaginação, apesar do contrassenso da possibilidade. Ela solta as mãos sua e da menina e lhe dá um tapinha no ombro.

– Lembro, pô.

– Você era tão chorão.

– Criança, né, hehe.

– Não, Cadu. Você era um caso à parte.

– Eu sou a Ana Clara – a menina informa.

– Meu amor, sabia que esse moço é seu primo?

– Primo? – o olhar desconfiado, agora indignado, se estreita. – Ele é velho.

– Garota!

– Não de primeiro grau – Cadu adiciona sorrindo amarelo.

– Que que é primeiro grau?

– Não interessa. Vai brincar. Só não volta pra chuva.

Ana Clara rouba um ovo de codorna da tigela de salpicão antes de disparar para outro cômodo.

– Não repara, por favor. É filha do Wellington. Uma graça, mas desbocada… Arteira…

E, enquanto arruma ou pretende arrumar os objetos na cozinha, desencadeia um monólogo convulso e confuso começando pela menina, minidemônia que estressa todo mundo mas quando não está faz a maior falta, filha do inconsequente do Wellington com uma tal de Alexandra, mulherzinha de caráter duvidoso, piranha mesmo, se Cadu perdoa a expressão sincera, porque esse aí sempre teve dedo podre pra escolher mulher, tanto que agora deu de andar pra lá e pra cá com uma tal de Josilene, rodada no bairro, chave de cadeia, boca suja tipo o valão, roupinha de piriguete despudorada, só Jesus na causa, a sina é de família, Rodrigo também já se complicou numa história dessas, até ela própria, impossível não confessar, logo depois de Cadu sumir se envolveu com esse tal de Dorigo que fez sua cabeça de um jeito que meu Deus do céu, causou a maior treta na família, até droga rolou, Cadu acredita?, substância pesada mesmo, pó, pedra, mas graças a Deus essa vida de mundo ficou pra trás, dela só sobrou o Junin que tem o mesmo nome daquele desgraçado mas é o oposto todinho, Cadu deve ter visto lá fora, menino trabalhador, responsável, respeitoso, ainda não apareceu com mulher mas a que fisgar o abençoadinho vai ter sorte, Cadu pode escrever.

O solilóquio, que em outras situações seria exaustivo, agora é uma oportunidade para que se situe e organize a mente sem precisar se preocupar com a própria imagem. A prima tem algo útil em um reencontro desses, de longa data, imprevisto, imposto por ele aos demais: entrega. Ela pode não ter noção (ou pode sim, vá saber), mas agora está lhe entregando um pouquinho de si própria e da família. Ele aceita agradecido o presente, consciente de que não consegue fazer o mesmo. Alguns dos nomes lhe soam como vindos de uma ficção antiga, um livro ou filme que assistiu há tempos e pode até ter lhe afetado, mas não a ponto de compor sua própria história. Pessoas entram e saem da cozinha, ele sente olhares, mas não retribui, foca na prima.

– Nem gosto de pensar nisso porque a gente nunca foi bom de agregado – nesse ponto ela olha de esguelha em volta e posiciona as costas da mão direita do lado esquerdo da boca, perpendicular ao rosto, arregalando os olhos em um gesto de confidência, mas sem diminuir o volume da voz. – Inclusive tem uns aí que se eu fosse você não dava muita confiança. Depois te digo quem. Gentinha mesmo, da pior qualidade. Mas fica tranquilo que a maioria aqui é fechamento, os piores olho junto sumiram faz tempo, a falsidade não se sustenta. – Ela contorce o rosto como se levasse um susto e esclarece: – Claro que não tô falando de você.

Era o que temia, algo que inclusive demorou a acontecer: o assunto se voltar para si. Adriana parece se dar conta de estar discursando para uma espécie de espectro. Seu olhar o atravessa e busca algo além, talvez tentando vislumbrar as conexões possíveis entre o antigo menino feliz e chorão e o quase ancião abatido e encharcado. São tantas possibilidades, um número praticamente infinito, ele pensa, tão inconcebível que soa absurdo o fato de ter vivido apenas uma, e logo essa, a única capaz de trazê-lo até agora.

– Você foi outra história. Aquela época foi muito triste. Às vezes bate uma saudade da Edineia. Ela tinha a presença muito forte. Faz falta até hoje.

Surge um silêncio desconfortável. Talvez seja hora de falar.

– Ela se foi muito cedo.

– Demais! – o lugar-comum parece agradá-la. – Nossa, real. Os bons morrem cedo. Ela não mereceu. Você sofreu tanto, né? Tadinho.

O que não faltam a Cadu são recordações, mas, estranhamente, a dor inicial causada pela morte da mãe lhe é inacessível. Só restam a falta distante, a angústia delicada, a saudade da mão cheia de suor, calos e ansiedade a buscar a sua ao atravessarem qualquer rua em um cuidado constante mas não mais tão necessário às vésperas da pré-adolescência do menino que amadurecia cheio de neuroses em relação à finitude da própria vida. E sempre a sua própria, nunca as dos outros, muito menos a de Edineia, cuja figura emanava uma aura de perpetuidade. O choque deve ter sido horroroso. Mas agora não tem como saber.

– Sofri muito sim.

A pena no olhar da prima é fresquinha, como se a morte tivesse ocorrido ontem. Ele não consegue se decidir se gosta disso ou não. Sente um conforto misturado com sensação de impostura. Está recebendo um sentimento destinado a um ser do passado, alguém que praticamente não existe mais.

– Mas enfim, e você? Como vai a vida? Casou? Trabalha com o quê?

Cadu responde sem entrar nos detalhes, não casou, é jornalista, a vida vai bem, e tenta logo direcionar a prima para falar novamente de si mesma e de suas próprias questões, tarefa que se mostra trivial. Ela repete as críticas a Wellington e Josilene. A picuinha, que no começo lhe parecia minimamente interessante, agora soa repetitiva e inadequada. Ele no entanto força interesse, segue perguntando, pois o assunto rende e é uma maneira de se inteirar da dinâmica familiar.

– Foram tantos caras assim?

– Menino, você não tem noção. Não sei como o Wellington consegue se equilibrar de pé com tanta galha na cabeça. Mas falo assim porque me preocupo com ele, sabe? Criei o menino quase como se fosse um filho. Então a Aninha é como se fosse uma neta. Imagina! Eu, vovó! Você teve filho?

– Não – e adiciona, já tentando cortar o assunto: – Nem pretendo.

– Ai, é bom, menino. É ruim, mas é bom. Não tem dinheiro ou conforto que paguem você ver aquela coisinha ali que saiu de ti crescendo e tomando rumo. Você tem sorte de ser homem e poder mudar de ideia a hora que quiser. Vai pensando bem. Aqui pelo menos o que não falta é criança pra você ir experimentando, molecada sangue do seu sangue.

Cadu não acha que isso signifique muita coisa, até porque em retrospecto toda a espécie humana acaba desembocando em algum ancestral comum qualquer. Mas esse ceticismo bobo não serve para nada. Ainda posso ser vocês.

– E Talita?

– Que que tem?

– Ela tem filhos também, né?

– Talita fica mais na dela. Aparece por aqui só de vez em quando, nem sempre traz as crianças. Enfim, ninguém é obrigado a nada. Vamos lá falar com o povo?

Dirigem-se para a sala, onde começa uma sucessão caótica de encontros que o desnorteia. Dessa vez reconhece os tios. Tia Regina: fria e polida. Boa tarde, meu filho. O vocativo ao menos sugere um pouco de carinho. Tio Marcos: espalhafatoso e eufórico. Invasor na área! Cervejinha? Vai? Não bebe? Solange, o rapaz não bebe. Se desviou, virou crente igual a tu. Tia Solange: acolhimento contido. Não liga pra esse velho bêbado. Já comeu? A torta salgada tá uma delícia. Ana Clara: acolhimento indistinto e cambalhotas. Ei, olha o que eu sei fazer. Primos desconhecidos e agregados na faixa dos dez a trinta anos de idade, apresentações inúteis, nomes e relações familiares que esquece logo após escutar. Depois se vê relegado a um canto da sala observando a família se ajeitar no novo espaço, julgando os próprios gestos patéticos de quem não sabe o que fazer com a falta de lugar: alternância entre mãos nos bolsos e braços cruzados, miradas aleatórias ao redor, pés ansiosos batendo no chão. Como quando ainda frequentava baladas, bloquinhos e micaretas. Em suas fantasias sobre o momento atual, fossem elas agradáveis ou temerárias, agora percebe, sempre se via no centro das atenções, o elemento estranho a causar excitação e perplexidade. O que até parece ter acontecido, mas por pouco tempo. Deveria estar sentindo alívio. Por que essa angústia difusa?

– Koé, mano, vai um guaraná? – oferece um rapaz que Cadu supõe ser Junin.

– Não, valeu.

Só bebe sucos integrais e isso não deve haver aqui. Daqui a pouco vai precisar arranjar um pouco de água. Será que ainda extraem a água do poço? Um gosto terroso, adocicado e levemente desagradável surge em sua memória junto com a lembrança da curiosidade sobre o gosto da cerveja, o deslumbre pelas goladas profundas dos tios seguidas de sorrisos e exclamações de euforia que lhe despertaram no fim da infância o desejo de sentir o mesmo, desejo compartilhado com Talita, originando tramas para roubos de latinhas às escondidas propostas por ela, de todo o grupo de primos a mais destemida e propensa a más-criações. Hoje não bebe (nunca teve o hábito) e nem sente vontade. As goladas dos tios continuam profundas. Pega o celular (resistiu o quanto pôde) e finge foco na tela, os ouvidos atentos ao que consegue captar das conversas ao redor. Alguma peripécia de algum primo (provavelmente Wellington) com alguma mulher (provavelmente Josilene), Sampaoli um pardal doido varrido, o valão sendo coberto, como pode um cara desses no Flamengo, Talita que foi comprar cerveja e demora mais do que o normal, a chuva dando uma trégua, o quanto deve ter de maracutaia nessa obra, a carne toda encharcada, quem sabe agora não dá uma amolecida porque estava dura para um cacete, Auxiliadora que acordou e talvez esteja na melhor hora para receber visitas, porque até filé mignon na mão do Marcos vira carne de pescoço, o que acha?, vamos?, o silêncio estranho até Cadu perceber que tia Regina se dirige a ele.

– Oi? Quê?

– Sua bisavó. Não foi ela que você veio ver?

Cadu precisa confessar a si próprio que esse nunca foi o motivo da visita, ao menos não o principal. A velha é um colosso, Talita escreveu, sugerindo-lhe a visão de transcendência, na verdade menos visão do que lembrança, pois provavelmente era assim que a enxergava há três décadas. E, como tudo que transcende, melhor manter distância. A tia o observa com expressão de censura, a mão na maçaneta já girada da porta prestes a ser aberta. A ansiedade o domina, inesperada, como se o momento óbvio nunca estivesse no roteiro. Assente com a cabeça.

E, como quase sempre, a concretização do evento minimiza as preocupações que o antecederam. Auxiliadora é só uma versão maior, mais deteriorada, mais frágil, menos intimidante e mais terrena da matriarca de antigamente. Ela olha para o nada na parede à maneira dos cegos, o sorriso bonachão no rosto sugerindo desprendimento. Os cabelos curtos, de um grisalho fraco, joviais até, contrastam com a pele cheia de manchinhas desbotadas e muito enrugada. O quarto, sombrio tanto na ausência de iluminação quanto na madeira escura dos móveis, cheira à alfazema e urina. Cadu se aproxima e por reflexo pede a bênção. Bênção, bisa. Era assim que falava quando criança? Isso significa que há um resto de criança nele enunciando frases infantis a adultos de outros tempos? Também por reflexo encosta em seu braço, se recriminando pelo próprio desconforto, pois ele próprio tem a pele flácida o suficiente para que a velhice já não seja tão repulsiva.

– Deus te abençoe, meu filho.

– Lembra do Cadu, dona Auxiliadora? Menino levado, chorão que só. Filho da Edineia!

À expressão despreocupada de Auxiliadora se soma um franzir delicado, como se algo no vazio da parede encarada começasse a lhe chamar a atenção.

– Hmmmm, hmm, hmm, hmmmmm – a velha cantarola a melodia de O mundo é um moinho, balançando a cabeça em movimentos circulares. – Hmm, hmm, hmm, hmmmmmmm, hmm, hmm, hmm, hmmm, hmmmmmmmmm. Levado? Levado é pouco. Uma peste! Demoninho traiçoeiro! Outro dia derrubou do meu armário cinco xícaras de uma vez!

Cadu arregala os olhos.

– Difícil é imaginar o que ele não quebrou – comenta Regina com expressão severa.

– Toma cuidado pra não destruir mais nada – Auxiliadora recomenda com um sorriso lúcido que destoa de toda a cena. – É tudo muito frágil e custou pra conseguir.

– Pode deixar que ele já tá bem mais cuidadoso.

– Tá bom – diz a velha, parecendo se tranquilizar. – Cadê sua mãe?

Cadu estranha a ausência do próprio choque e pensa na pertinência da pergunta. Em lugar nenhum, ele quase responde de acordo com sua crença pessoal. Mas quem pode ter certeza? E no que essa fala ajudaria? Por mais que a demência seja um dos seus grandes medos, quem sabe não resulte em um estado mais bonito, menos cruel, mais repleto daquilo que a objetividade sempre acaba levando embora?

– Tá viajando – Cadu responde sem hesitação.

– Manda ela voltar.

– Mando, bisa.

– Ela não tá com aquele Osvaldo, né?

– Não – Regina intervém seca. – Osvaldo morreu.

Auxiliadora desfaz o meio sorriso e externa uma confusão dessa vez penosa. Cadu sente que a informação da tia foi inoportuna, desarranjando algo no universo particular da bisavó. Além do mais, não bate com a verdade: seu pai está muito bem vivo, com a saúde quiçá melhor que a do filho.

– Que bom – Auxiliadora responde, cada vez mais atônita.

– Edineia foi pra um lugar tranquilo – Regina adiciona enquanto se dirige à porta. – Logo você vai pra lá também.

– Se Deus quiser. Levo o menino junto.

– Acho que ele vai preferir esperar um pouco – a tia diz em tom peremptório, sorrindo pela primeira vez, um levantar do lado esquerdo do lábio de alguns milímetros, logo antes de empurrar Cadu para fora e fechar a porta. Por alguns instantes e não sem sensação de culpa, ele divaga sobre a decrepitude da velha, no tanto que o tempo agiu sobre aquele corpo, na sua própria ausência por todo esse tempo, no pouco tempo que provavelmente resta para ela.

Ao retornarem pela sala, tio Marcos o puxa pelo braço e o adiciona a uma rodinha que inclui também três jovens.

– Rapaz, vem cá. Você mora onde?

– São Conrado.

– Perfeito! Viram? Boa, garoto. E qual a diferença de lá pra cá?

– Como assim?

– Diferença, porra. O que não é igual. Não preciso te explicar isso, não se faz de idiota.

– Ah, tio. É tanta coisa que é até difícil pensar no que falar. Sei lá, transporte público?

– Que mais?

– Saneamento. Lazer. Natureza.

– E como você conseguiu tudo isso?

– Eu?

– É, é.

– Eu não consegui nada.

– E você acha que esses mulambentos aqui conseguem?

– Mulambento é meu ovo – o mais jovenzinho retruca. – A culpa não é nossa se tu é um velho conformado.

– Cala a boca. Você acha, Cadu? Sargento Roncalli vira São Conrado um dia? Consegue colocar um pouco de juízo na cabeça desses moleques? Você meteu o pé, fez mais que o certo. Eles precisam batalhar pra isso também. O que mudou desde que–

– Cadu? – uma voz feminina levemente rascante interrompe Marcos. Essa voz já enunciou esse nome várias vezes, quase sempre carregada de alguma emoção exacerbadamente positiva ou negativa, ansiosa por brincar, exaltar, reclamar, choramingar, evidenciar sentimentos e sensações sem constrangimento, em um modo de se expressar oposto ao que soa agora.

– Oi, Talita.

Como discernir verdade, lembrança, projeção, ilusão, quando se observa uma senhora cansada e cautelosa e se sente uma ligação tão pungente com uma criança tão longínqua? O estranho é não conseguir discernir o que exatamente causa essa ligação; a criança é imprecisa e a senhora é apenas a imagem de um instante, mas as duas se fundem na percepção de Cadu como se o tempo não tivesse passado. Ela se aproxima, o abraça bem forte por menos de um segundo, se afasta, joga o tronco para trás, o segura pelos ombros, apertando como se para conferir que de fato está ali, esboça um sorriso de cumplicidade, indica querer falar, é acossada por um ataque de tosse, cobre a boca com a mão direita e mantém a esquerda a apertá-lo tão intensamente que dói, as unhas de corte retangular atravessando o tecido da blusa, parece gargalhar, começa a lacrimejar, os olhos claramente irritados pela tosse, sim, um motivo óbvio, conclui Cadu, ainda mais por ele próprio nunca conseguir deixar de chorar sempre que tosse muito.

– Até que enfim! – tio Marcos exalta. – Trouxe as geladas?

Quando a tosse se torna uma sequência irregular de pigarros, ela o solta. Olha para Marcos, olha para o Fiat Uno na ruela com a mala aberta repleta de engradados de cerveja, olha para um menino de cachinhos e fralda correndo em sua direção com expressão chorosa.

– Mamãe, a Ana roubou minha chupeta!

– Você não me pega – a menina surge de trás de um abacateiro erguendo o objeto subtraído.

– Garota, devolve isso – Talita pede com tom de impaciência.

Ana Clara a ignora e balança caoticamente os braços e a chupeta, provocando o primo menor, que percebe o baixo efeito da bronca e sai em seu encalço todo desengonçado. Cadu infere que a cena é típica. Talita dá dois passos largos para segui-los, mas para abruptamente, dá meia-volta, chama Marcos com a mão e dirige-se com ele ao carro para buscar as cervejas.

– A mulher do álcool – Marcos berra em tom de exaltação. – É bom ter alguém de carro na área tão disposta a embebedar a gente. Você devia vir mais vezes. Sabia que seu primo não bebe, nega?

– Dá pra imaginar – ela responde sem desviar o olhar dos engradados que remove do carro. Alguém liga uma caixa de som bem potente que soa três acordes tocados por um cavaquinho. Me apaixonei por uma menina que tem um metro e sessenta e uma tatuagem do seu ex… O ambiente toma um ar mais festivo. Cadu percebe que já não chove faz tempo. Ela é do tipo que acaba uma família, basta encostar nela uma vez… Seu desconforto cresce. Quando foi a última vez que esteve em um ambiente desses? Eu caí no corpo dela e me viciei… Se bebesse, será que se sentiria mais à vontade? Agora eu tô apaixonado… Olha onde eu entrei…

A música embala com a entrada dos demais instrumentos e isso funciona como sinal para a família também embalar numa animação generalizada. As pessoas se levantam e chamam umas às outras, pares se formam e o quintal agora é uma pista de dança. Até tia Regina, com o máximo de empolgação que sua severidade parece conseguir expressar, levanta o saião, expõe as canelas e dá uns saltinhos tímidos. Talita atravessa a pista se balançando abraçada a um engradado, como se estivesse dançando com ele, seguida por Marcos, que faz o mesmo de forma exagerada, tentando fazer graça. Cadu observa com as mãos nos bolsos, balançando a cabeça para baixo, para cima e para os lados mais ou menos na batida da música, sustentando um sorrisinho amarelo que usa para transmitir admiração. É a maneira como, mesmo de longe, percebe, faz para se sentir pertencente.

– Você não dança? – Ana Clara surge e questiona enquanto balança a chupeta erguida para provocar o bebê às suas pernas, que chora, pula e tenta puxá-la para baixo pelo vestido.

– Não, e você?

– Tô dançando com ele, não tá vendo?

A resposta faz o sorrisinho amarelo se tornar amplo e espontâneo. Cadu volta a observar, tentando não focar em ninguém, mas sem conseguir deixar de voltar o olhar com frequência para dois pares: Talita e Marcos e outro casal desconhecido, que não se lembra de ter visto antes. Talvez tenham chegado há pouco. São jovens, bonitos e muito, muito apaixonados. Wellington e Josilene, supõe quase com certeza. Os olhares que trocam indicam a existência de um universo autossuficiente na pequena distância entre eles, um mundo que se sustenta dispensando o resto, mas, ao mesmo tempo, exala a afirmação da própria força para quem se interessa em contemplar. Seus movimentos são cúmplices e desenvoltos. Talita e Marcos são um par improvisado, não têm sintonia nenhuma, mas se divertem na falta de jeito, nas pisadas de pé, nas reboladas dele que ela aplaude e tenta imitar. O suposto Wellington veste apenas bermuda jeans e suas costas exibem duas tatuagens: um dragão verde à esquerda e o nome Josi (não há mais dúvida de quem se tratam) envolto por um coração azul à direita; Josilene veste um top preto e um short jeans tão curto que passaria tranquilamente por um biquíni se fosse de lycra. Não se percebe nela o coração correspondente. Cadu supõe que esteja escondido. A roupa de Josilene o faz reparar na da prima, um vestido verde cheio de girassóis que, se não se engana, é bem parecido com os da infância. Muita coisa não mudou. De alguns detalhes assim ele se lembra, mas sente ainda lhe escapar uma espécie de essência. Talvez o que deixou para trás quando foi viver com o pai no Catete. Com certeza algo se perde quando todo um lado da vida é abandonado por três décadas. Mas o quê? Tio Marcos rebola sozinho descendo à la boquinha da garrafa, espiando risonho quem o observa, como uma criança querendo chamar atenção. Talita separa o filho de Ana Clara, que começa a chorar. Possibilidades do que ser? Essa foi a perda? Ao encontrar Talita, ele se deslumbrou com o semblante da menina de suas lembranças, mas agora com o filho no colo, cheia de um cuidado firme e sóbrio, ela não tem mais nada de criança. É óbvio, banal, mas para ele não deixa de ser levemente chocante. Aquela senhora é uma mãe. Cadu não é pai, nunca foi marido ou irmão, já não é mais tão amigo quanto antes e deixou de ser primo, sobrinho e bisneto há décadas. Há quanto tempo também não se apaixona, como esses dois que se entregam à própria conexão de um jeito até meio irritante? O olhar que não desgruda, a canção melosa cantada como se se declarassem em simultâneo, leves apertões e puxões de cabelo parecendo remeter ao que deve acontecer mais tarde. Quando Cadu tenta se imaginar formando um casal seminu alheio a opiniões a dançar um pagodinho no churrasco da família e conclui, com um traço de inveja até meio constrangedora, que não, impossível, esse não é e nunca poderia ter sido ele, mesmo se continuasse morando por aqui, nesse exato momento sente um empurrão com força por trás de duas mãos que grudam em suas costas e o direcionam para junto dos demais.

– Vem.

De novo é guiado, de novo se desequilibra, não sabe se mexer, é sempre isso quando precisa se mexer muito. Já está no meio de todos ao perceber que de novo quem lhe guia é Adriana, quando ela agarra sua cintura, o gira para que fiquem frente a frente e o puxa para que comecem a dançar.

– Não, não, não – ele balbucia sorrindo, como quem na verdade quer aceitar, gesticulando movimentos ininteligíveis. Negar nunca foi seu forte.

– Vombora! Vai! Vamo! É fácil.

Ela pega a mão de Cadu e a coloca nas próprias costas. Ele sente através do tecido fino da blusa as várias dobras de gordura sob a pele mais fria que a sua. Todo o volumoso tronco de Adriana, seios e barriga, se protubera perante o seu, impossibilitando que recue e evite o contato. Há quanto tempo não sente o corpo de uma mulher dessa maneira? Tem medo e vergonha do próprio instinto, se concentra nas instruções que ela profere, sentindo estar destinado a falhar miseravelmente em tudo o que quiser tentar.

– Assim, ó. Um, dois, três, chutou. E um, dois, três, chutou. Faz igual a mim. Aí, boa. Mas coloca o pé pra fora. Não, pro lado. Isso. Levanta um pouco o cotovelo. Quando você for pra trás, eu também vou. Agora dá uma giradinha.

Pouco depois da adolescência frequentou um curso de dança por menos de um mês. Tinha se esquecido desse tipo único de frustração, da quase incapacidade de executar o que para os outros é tão simples. Ao acertar um passo, o júbilo minúsculo mitigado pela condescendência da parceira ao parabenizá-lo. Isso, boa, Cadu! Que coisa besta! Está atordoado tanto pelos próprios movimentos caóticos quanto pelo relevo do corpo da prima cada vez mais nítido colado no seu quanto pelo passado que volta para lhe acossar dessa maneira tão multifacetada. Impossível se manter coerente, encontrar um sentido nessas condições. Pela primeira vez se pergunta se realmente deveria ter vindo. Adriana por sua vez deve ter se perguntado se realmente vale a pena insistir num Cadu dançarino, pois parou com as instruções e agora só executa o dois pra lá, dois pra cá.

– Tá vendo aqueles dois? A cara de cachorro abandonado olhando a piriguete. Como pode, Jesus Cristo. Aquela roupa.

– Geral fica falando deles, né?

Ela inclina um pouco a cabeça para trás e aperta os olhos.

– É. Mas tem como não falar?

– Não sei, você me diz.

– Impossível. É muito escandaloso. E esse menino parece imune ao que a gente fala, chega a irritar. A palavra da família devia ter um pouco de importância. Engraçado como são as coisas, bem o oposto do teu caso.

– Meu caso? Como assim?

– Não lembra? Qualquer coisinha que a gente falava era choro. Edineia, coitada, a cada cinco minutos precisava parar pra ouvir uma queixa. Mãe, o Robinson me chamou de–

– Licencinha, empresta o primo pra uma dança?

Adriana encara Talita primeiro com desnorteamento e logo com hostilidade.

– Claro. É seu, pode levar.

Ela solta um suspiro longo e se afasta apressada, empurrando os demais. Talita a observa semirrisonha.

– Tá me devendo uma. Agora não precisa mais ensaiar pra Dança dos Famosos, vai tranquilo.

Ele já havia desistido dos passos, mas enfim. Talita, que segura o filho no braço direito, encosta a mão esquerda nas suas costas e recomeça o dois pra lá, dois pra cá. A distância, apesar de segura, não evita um nervosismo até maior. Ao encostar a mão na pele quente das costas dela, se dá conta do próprio suor e desce um pouco para se apoiar no vestido. O cheiro de cerveja é fortíssimo. O bebê sisudo não para de encará-lo.

– E aí, o que tá achando?

– Legal.

– Legal? Só? Fala sério, pode dizer. Parece uma cena de filme congelada.

– Você acha? Olha essa animação.

– Não tô falando disso. Ali o Marcos. O figura vai fazer cem anos e continuar o mesmo bestalhão de sempre. Adriana pode ganhar outros duzentos quilos, trocar de religião mil vezes e vai ser sempre a menininha chata e dissimulada que você conheceu. Isso que me dá nos nervos. As coisas não avançam. E não tô falando de melhoria, não vai achar que é prepotência da minha parte. Eu mesma só faço besteira, não melhorei nada. Olha a criaturinha aqui no meu braço como prova. Quer besteira maior que essa?

Cadu se surpreende e se constrange um pouco, retribuindo por fração de segundo a encarada do bebê.

– É a besteira mais linda do mundo? Coisa gostosa da mamãe, que não imagino viver sem? É, sim. Mas qualquer uma com o mínimo de responsabilidade não faria isso. Na minha idade. Sozinha. Ou melhor, com um merda que dispensei três meses depois. Consegue entender meu ponto?

– Acho que sim.

– Mas não te incomoda.

– Eu não tinha pensado assim.

– No que você pensou quando chegou?

– Nada. Nada em especial.

– A gente sempre pensa em alguma coisa.

– Tá. Fiquei lembrando. E comparando as lembranças com aquilo que eu via.

– Que tipo de lembrança?

– Seu vestido, por exemplo. A minivocê super usaria um minivestido desses.

Ela cora, sorri e franze o rosto em expressão de estranhamento, afasta o filho um pouco e olha para baixo muito rapidamente.

– Mas isso é bobagem. Sabe o que me vem à cabeça quando tô aqui? O quanto eu mudei. Como se esse lugar fosse uma espécie de ponto de partida. E voltar pra cá sendo outra pessoa, encontrar o mesmo povo preso na eterna dinâmica, me irrita de um jeito que não consigo explicar. – Ela esboça um sorriso estranho, carregado de uma ambiguidade difícil de decifrar. – Será que foi por isso que te chamei?

Ele sustenta o olhar, a interrogando.

– Você não podia ser o mesmo depois de trinta anos fora.

– Impossível ser o mesmo. Mas também não dá pra ser completamente diferente – replica e logo se pergunta se não existia nada menos vago e menos óbvio para dizer.

– Na minha opinião existem dois tipos de mudança. Tem gente que muda na superfície. Todo mundo, na verdade. Aparência. Opiniões bobas. Sei lá, coisas que não entrem muito dentro. Mas às vezes, e acho que bem raramente, qualquer parte fundamental se transforma. Talvez por causa de um trauma, pelas porradinhas pequenas mas constantes da vida, quem sabe por alguma felicidade grande demais. Tô viajando muito? Faz sentido?

– Faz, pô.

– Agora por exemplo tô tentando te ler e descobrir em que tipo você se enquadra.

O velho desconforto de ser o centro da conversa.

– Acha que consegue assim tão rápido?

– Difícil. A referência é de muito tempo atrás – ela para um pouco de falar e limpa com calma a baba do filho que escorria abundante até a metade do pescocinho. – Quem sabe com umas perguntas? Tipo, por que você não voltou mais?

Cadu não encontra o que dizer e, ainda mais grave, não consegue controlar e apreender a própria expressão facial, o que o deixa às cegas em relação a como a prima interpreta sua reação.

– Se não quiser responder, não precisa.

– Não é isso. Na verdade, não sei. Essa época é muito nebulosa pra mim.

– A vida com seu pai devia ser bem melhor, né? Digo, de condições, conforto.

– Não acho que esse tenha sido o motivo.

– Foi o quê, então?

Cadu percebe um tom talvez incisivo demais na pergunta, para ele um tanto fora de lugar.

– Não adianta tentar dizer algo agora, seria inventar, realmente não lembro.

– Vou ser bem sincera. Você já foi tema de sessão de terapia minha algumas vezes. Sabe quando a psicóloga vai cavucando o passado, cavuca, cavuca, até que chega num ponto que parece ser uma espécie de origem? Uma bifurcação que gera vários outros problemas? Ela acha que a morte da Edineia, o seu sumiço, foi um ponto desses. Ainda não sei se concordo, mas não deixa de fazer sentido.

– Que tipo de problemas?

– Dificuldade em criar laços. Medo de não ser o suficiente. Sentimento de inferioridade. São palavras da Fernanda. A terapeuta. Ela diz que o fato de você ter preferido a vida mais confortável do seu pai–

– De novo, não acho que isso tenha sido–

– Se você diz que não lembra, como pode ter tanta certeza? – ela pergunta com rispidez repentina, a voz raivosa e os olhos úmidos. – Será que não consegue pelo menos aceitar a possibilidade?

A Talita da infância, mandona, inflexível, chorona, parece se materializar ali na sua frente, resultando em um déjà vu surpreendentemente ruim.

– Tá bom, pode ser – admite, mesmo convicto do contrário.

– Aí fico me perguntando: foi nesse ponto que a raiva começou? Tia Edineia morta, você sumido, eu virando adolescente, tudo em mim mudando e o resto do mundo insistindo em ser o mesmo. Acho que foi daí que veio minha curiosidade, sabe? Queria entender como você mudou. Mas no fundo tô meio decepcionada, não consigo entender nada.

O bebê começa a chorar. Talita tenta acalmá-lo, sem se afastar de Cadu e sem sucesso; Ana Clara se aproxima, ergue os braços e tenta puxá-lo.

– Tia, posso brincar com ele?

– Não tá vendo que ele tá chorando?

– Ele quer brincar.

Talita solta um muxoxo, se afasta de Cadu e abaixa o filho, que continua o choro por instantes no chão até ser distraído pela prima. Logo passam a correr alternadamente um atrás do outro em meio a risadas e gritinhos agudos.

– Tô com câncer – ela diz, observando as crianças.

– Poxa, Talita. Sinto muito – balbucia. – Quer dizer, desejo força. Vai dar tudo certo.

– Não é nada sério. Claro, na medida do possível pra um tumor. De mama, mas em estágio inicial, chance de cura alta, dizem. Tomara, né.

Um sol tímido aclara o quintal. As pessoas se mostram mais e mais eufóricas e Cadu pensa, não sabe bem por quê, no ato sexual, na rampa crescente e para ele um tanto árdua de êxtase que já não experimenta há um tempo.

– Talvez seja por isso que eu esteja desenterrando essas coisas que nem fazem sentido mais. Desculpa, mas achava que–

– Você lembra de tumimanda?

– Quê?

– Não lembra? Sério? Crianças, vêm cá. Ana Clara! – vira-se para Talita. – Qual o nome do seu filho mesmo?

– Miguel.

– Ana Clara! Miguel!

Os dois interrompem as corridas e atendem ao chamado, as expressões não muito satisfeitas.

– Vou ensinar uma brincadeira pra vocês. Se chama tumimanda. É bem fácil. Quem quer começar mandando?

Ambos pulam e gritam ao mesmo tempo: eu, eu!

– Assim não vai dar. Melhor eu fazer com a Talita pra mostrar como é.

Cadu, pela primeira vez desde que chegou, se sente no domínio pleno da situação e das próprias ações. Vira-se para a prima, a percebe sorrindo entre aturdida e deslumbrada, a encara de modo cúmplice, convidando à brincadeira. Começa a declamar muito rapidamente:

– Ontem eu tava na varanda, conversando com a Amanda, aí veio a Iolanda, pedindo pra eu ir pra Holanda, tentar encontrar seu panda, até lá muito se anda, falei não pra sua demanda, eu só obedeço quando tumimanda!

– Apertar o nariz do Miguel – Talita completa de pronto.

Cadu vai até o menino e aperta seu nariz. Miguel a princípio se mostra confuso, sem saber como reagir, mas a prima logo se empolga e isso é suficiente para que se empolgue junto.

– Legal! A gente tem que falar tudo isso também? – Ana Clara pergunta.

Cadu e Talita se entreolham. A regra original dizia que quem errasse um verso ou não cumprisse o desafio continuaria na posição de mandado na rodada seguinte. Depois a brincadeira foi se sofisticando, com desafios mais complexos, sistemas de pontos e até narrativas com mundos imaginários.

– Melhor só um gritar tumimanda e o outro responder com o desafio, que tal? Pode começar, Ana Clara.

– Tumimanda!

– Puxar a orelha da mamãe.

A menina corre até a tia e pula várias vezes tentando alcançá-la, sem sucesso.

– Tenta – Talita provoca, olhando para baixo.

– Ah, tia, não vale.

– Não conseguiu. Perdeu. Miguel continua mandando. Vão lá brincar com o resto do pessoal, essa é a graça.

– Tumimanda! – Ana Clara grita já correndo em direção à maior concentração de pessoas.

Um silêncio de alguns segundos se sustenta até Talita dizer:

– Você lembra da música inteira.

– Acho que minha memória é seletiva.

– É uma coisa tão boba, né? E a gente brincou tanto disso.

– Demais.

Mais silêncio entre eles. Os gritinhos e gargalhadas, a cada instante mais entusiasmados, sugerem que a brincadeira realmente agradou. A pele de Cadu se arrepia, acometida por um vestígio do antigo prazer; ele revive, como se estivesse jogando junto, a adrenalina e agonia que sentia sobretudo ao exercer o papel de mandado.

– Gostoso lembrar disso – ela diz vagarosa. E, depois de uma pausa, acelerando o ritmo: – Mas sabe de uma coisa? Acho que essa conversa não tá fazendo muito sentido. Pensei que precisava de algum motivo, explicação, pra poder me reconciliar com aquela época. Mas tô vendo que é besteira. Desculpa.

De perto da mesa principal irrompe um som de vidro quebrando, seguido logo de ralhação veemente, estalos, choro. Cadu sente um impulso de olhar, desviar o foco da prima, mas ela continua a falar tão célere, tão imperturbável, que ele não consegue.

– Mas por mais que a gente não volte a ficar brincando de tumimanda por aí, o que acha de retomar um contato? De vez em quando, se pá.

O choro se acentua, são gritos de dor, de sofrimento físico. Cadu pensa: uma menina tão alegre. Mas o que isso impede uma criança de chorar? Já, já ela volta a correr extasiada e o sofrimento se esvai. Como ocorreu a ele tantas vezes. Agora se lembra: tantas surras, da mãe, das tias, das avós, da bisavó, das mulheres, sempre das mulheres, que era quem cuidavam de todos eles no fim das contas.

– Nem sei bem por quê, mas ainda sinto um pouquinho de saudade de você.

Cadu a percebe avermelhando-se, os dedos apertando-se velozes uns contra os outros em gestos de estalar, mesmo que a maioria já esteja estalada. Talvez isso não esteja sendo fácil de dizer. O choro de Ana Clara diminui e se torna um barulho de fundo suave, agora parte natural de um ambiente de família. Ele não fala nada e a abraça com bastante sinceridade, mais até do que se julgava capaz de sentir, segura-a nas duas mãos e faz que sim com a cabeça.

Depois disso nada mais de relevante acontece. Cadu permanece duas horas adicionais na festa, um pouco mais taciturno do que antes, interagindo superficialmente com vários dos familiares de que lembra e de que não lembra. Conseguir carro para casa é uma luta. Recusa ofertas de carona até o centro de Belford Roxo, insiste no aplicativo, oferece valores altos e enfim dá certo. Pensa por dias com muito esmero em tudo que viu, ouviu, lembrou, sentiu, provocou e, introspectivo ansioso incorrigível que é, gasta a maior parte do tempo focando no que poderia ter sido e não foi, além do que foi e poderia não ter sido, repassando os diálogos, remoendo as impressões, conjecturando e avaliando possibilidades como se a vida fosse um jogo de xadrez. Nunca mais ele vai voltar.