guinas

Publicado na antologia Furos na carne (Bestiário, 2022).

Por que a teima? O que te move exatamente? Que alegrias te trouxe? O que te fez concretizar? Gritos? Lágrimas? Trechos? Expostos por aí na fragilidade mais vulgar em troca de frieza constrangida? Insistir pra quê se não és bom? Repete comigo pausadamente: não – sou – bom. Teu estilo não tem graça, tuas ideias são sem cor e pra piorar não terminastes uma história até hoje, nem pequena nem grande, nem boa nem medíocre nem péssima, nada com começo, meio, fim e pronto tipo as contadas em mesas de boteco movidas a etanol e petiscos e tu não sabe da maior e foi então que e aí é que tá e que tu com todo teu sacrifício não consegues colocar no papel por mais que forces e espremas, nada, nada, só trechos. Sempre ruins, por sinal. Qual a coerência de um vício sem êxtase ou fuga? Vício que não te domina e tu tentas dominar, és doido mas não te desapercebes dessa discrepância, não podes deixar de considerar por que não te entregas de uma vez. Cara, sê feliz. A vida sem ambição é tão bonita. No mínimo mais poética que tuas pretensões. Sê um monge. Ou tenta a pureza do lado animal. Deus, talvez. Qualquer coisa menos essa prisão, esse quero-escrever-mas-não-consigo ou tenho-um-sonho-mas-sou-ruim-demais-pra-ele ou mesmo o-universo-é-injusto-nasci-tão-merda-enquanto-outros-tão-foda-por-que-não-sou-uma-Chimamanda-da-vida-por-exemplo-? ou o vazio do branco da tela preenchido ocasionalmente com palavras bonitas a insistirem em não se conectar de modo minimamente sintático, que dirá literário, o desencanto contínuo da solidão de não conseguir nem buscar o próprio sonho nem compartilhar tuas angústias muito menos dar vazão ao que sentes de mais representativo dentro de ti. Tens uma teoria: teu senso crítico inchou rápido demais e esmagou o criativo. Não deverias portanto aceitar teu papel e ser um crítico? Não é função inferior, absolutamente, não venhas de papo presunçoso. As ocupações são todas dignas e propor o contrário é hediondo. Negar-te em assumir teu lugar é sinal de soberba e tolice e pelo que já aprendestes sabes que soberba e tolice unidas à mediocridade e teimosia costumam levar aos finais mais desgraçados. O quarto na alta madrugada é a materialização da tua angústia, repetitivo e abafado, mofado no cheiro e nas paredes azuis rachadas e descascadas, disfuncional nos mínimos aspectos, entupido de sacolas, papéis nos mais diversos estados, insetos, quadros pendurados com amor e encarados com desengano, McEwan, Morrinson, Tartt, Wallace, Heti, Franzen, DeWitt, Atwood e Whitehead, sossegadoramente anglófonos mas ainda assim contemporâneos, olhando pras respectivas câmeras e não tendo escolha a não ser te observar, uns irônicos, outros sérios, todos gênios. Tu sustentas a encarada e questionas: “caríssimos, com todo respeito, os senhores também foram sozinhos?” Whitehead manifesta diversão. Tartt é meio elitista. McEwan parece maravilhado consigo mesmo. “Alguém tomou a iniciativa de lhes vivificar? A arte já esteve presa dentro dos senhores? O processo de libertação foi algo pra outrem?’’ Só Wallace empatiza. “Por que não temos Nobel neste país?” McEwan continua maravilhado. “É questão brazuca ou sueca? Longe de me vitimizar, mas não só nasci neste buraco como não tenho o menor talento. A situação é gravíssima. Alguém por aí lê Lygia?” Aqui perdes a paciência e afundas a cabeça no que ainda resta do travesseiro. Esses arrogantes não vão te ouvir. E se gritares? Às vezes sonhas em sonhar em cantar pra poder impor tua arte nas vibrações das moléculas como fazem os bailes e as igrejas. Mas ai, que subjetividade insuportável e irredutível a tua, cismada com sequências de sentenças impressas. Como obrigar alguém a ler qualquer coisa? Sobretudo o que não foi criado? Invejas Laís, irmã-modelo, gritona há oito anos na escola de canto mais antiga do país. Aí é fá–Escola. A palavra, naturalmente repulsiva, debocha de ti. Traz o estalo. Solidão Necessidade Procura Acolhimento Ensino Escrita Exercícios Experiência Aperfeiçoamento Guinada. Os termos caem velozes, livre-associados. Aglutinam-se em frases não verbais. Lugar oculto Solução pra arte Tempo pra tudo. A história emerge inteira antes de ser escrita, primordial, clara em teus dois futuros. Amorfa. Perfeita pra ficção. Depois a vida vem.