você em mim

Apresentado como projeto final na Oficina de Criação Literária da PUC-RS.

Às quatro da manhã a gente já vai na descida da montanha-russa das drogas e não costuma pensar nas perspectivas pro resto da noite, mas foi nessa hora certinha que eu a vi. Em ponto. Não planejei, juro. Ela tava sentada no meio-fio em frente ao Ximeninho, não de um jeito desolado ou ressaquento mas reflexivo, cotovelos nas coxas, bochechas nas mãos, observando as poucas pessoas na rua como se fossem um documentário ou uma mostra de arte, sei lá, com o ar meio professoral e indulgente, parecendo julgar, entender e aceitar a todas. Uma delas era eu. Fui me aproximando sem saber como agir, sentindo sua encarada tímida passar da curiosidade pro interesse e do interesse prum convite que eu não tinha certeza se tava conseguindo aceitar. Quando cheguei a ponto de tê-la ao meu alcance, ela se levantou, deu umas batidinhas na bunda pra limpar a sujeira da calça e disse:

– Você também tá sozinha.

Foi a nossa introdução, perfeita assim. Depois seguimos pelo convencional: Kethelyn, prazer, Maria Cecília, o prazer é meu, o que você faz a essa hora sentada aí, ah, só pensando. Quando fui dar os dois beijinhos (sou estranha, eu sei, quem faz isso já no meio da conversa?) reparei no grude dos suores dos rostos, nas cócegas do cabelão encaracolado e na mistura de hálito etílico com o Her Secret Bloom Antonio Banderas. Uma fração de mindinho me invadiu a cintura por baixo da blusa. Entendi que a nostalgia se faria presente, sim, mas não sem êxtase. O que no fundo já esperava.

– Quando você apareceu eu tava pensando nessa galera aí. É tudo tão bobo, né?

– Como assim?

– Ninguém relaxa de verdade. Nem sabe na real o que quer.

Concordei com um aceno. A onda do ácido se desfazia e eu entrava na onda dela, tudo suave, natural. Andamos pela cidade: Fundição, Catedral, Selaron, Arcos. Eu era cada vez mais parte da noite carioca, ou melhor, a noite carioca se mostrava cada vez mais viva dentro de mim. E quando fui ver já távamos abraçadas fazendo brincadeiras bobas, desarrumando os cabelos uma da outra, adivinhando as vidas das pessoas na rua. O Rap da Felicidade (mas eu só queeeero é seer feliz, feliz, feliz, feliz, feliz, onde eeeeu nascii, hã!) tocou em algum boteco e ela pareceu aproveitar minha distração pra perguntar:

– Você já decidiu lá fora pra onde vamos?

Não sei porque fiquei tão atônita. Era óbvia a possibilidade de ela entender o que tava rolando. A Ceci sempre foi dessas, perspicaz e direta à beira da indelicadeza, combinação ideal pra gerar momentos assim. Tentei disfarçar a decepção (não acho que tenha conseguido) e perguntei como se fosse só por curiosidade:

– É tão evidente que não sou daqui?

Ela arqueou as sobrancelhas.

– Nunca ia imaginar que vocês não tinham noção disso.

Você deve saber que são infinitas as possibilidades pra se posicionar um mundo em relação a seu superior imediato. No que eu projetei, os seres têm noção da existência de uma realidade acima e são dotados de um sentido pra vida que passa pelo encontro entre as realidades. Tipo uma religião, entende? Mas indefinida, sem dogmas, rituais, escrituras, nada disso. Só uma ideia vaga que as pessoas nascem sabendo. Foi meu jeito de não mentir sem deixar de fazer um mistério. E assim o nosso encontro teria um quê de especial, de transcendência até. Mas o objetivo era que ela experimentasse tudo com naturalidade e juntasse as peças só depois, atribuindo significado enquanto lembrasse. Seria mais natural. Mais bonito, né? De todo modo não fiquei tão triste porque o principal ela ainda não tinha como saber: que aquele mundo era dela, só pra ela e existia em função dela.

– Não decidi ainda. O que você acha?

Escolhemos um motel barato. Transamos antes mesmo de subir pro quarto, de pé nas escadas, com um senso de urgência que reparei não ser só meu. Talvez também um senso de completude, porque desde o início a gente meio que fez de tudo, sem ligar pros cheiros e gostos de corpo fortes demais ou pro desleixo do lugar. É impressionante como ela sempre soube onde e como me beijar, lamber, pinçar, arranhar, e o mais importante, apertar. Acho que o que me conquistou mesmo foi a forma como ela me apertava. Dava uma segurança, entende? E uma liberdade, eu podia ser qualquer coisa enquanto agarrada daquele jeito. Ficamos ali até depois de amanhecer. Depois subimos e repetimos, entramos no chuveiro e repetimos, deitamos na cama e repetimos e quando o sol se pôs de novo eu já tinha recuperado a noção de ter sido íntima daquela mulher por quase a vida toda.

Entramos numa espécie de relacionamento. Saíamos sempre à noite, quase sempre naquela região do Centro e umas poucas vezes na orla da Zona Sul. Esse começo foi bem gostosinho, ao mesmo tempo um reviver e um explorar de possibilidades novas, sem responsabilidades ou pesos, um carpe diem diria que perfeito. Eu procurava não manter muito um padrão temporal. Às vezes deixava rolar uns dias por lá e voltava depois de só uma hora daqui. Noutras fiquei uns dois meses aqui e só deixei passar um dia lá. Eram brincadeiras, me divertia pensar nas diferenças entre o que eu e ela sentíamos conforme os diferentes tempos. E, não importava quanto tempo rolasse, eu não procurava saber o que ela fazia quando eu não tava. Tinha a curiosidade, mas o que isso importava no fim das contas? Se não era a minha realidade? Eu tava convencida de que tudo daria certo dessa vez se reprimisse as paranoias, se pudesse me concentrar não no que aconteceria em qualquer tempo ou lugar mas no que acontecia de fato ao meu redor. Estar com ela num mundo à parte tornava isso tão fácil: chegar, sorrir, dizer o oi meio tímido, beijar selinho, sair pra dançar, beijar de língua, ficar doidona, fazer besteira na rua, gargalhar até doer a barriga, mandar o resto do mundo pro caralho, resumir tudo que se pode querer a um instante de gozo, repetir, repetir, se despedir e, quando quisesse, voltar.

Assim as coisas seguiram mais ou menos congeladas por um tempo, não lembro quanto.

Até que ela furou comigo. Na verdade não foi bem isso porque nunca marcamos nada, mas a essa altura eu já considerava um acordo tácito as noites de sexta serem nossas. Esperei até o sábado de manhã, adiantei imediatamente uma semana até a outra sexta e dessa vez a encontrei no Ximeninho, o lugar de sempre. Tava mais desenvolta que o normal, mais leve. Depois do oi e do selinho, comentei como quem não quer nada que não a tinha visto por ali na última sexta.

– Eu tava com outra pessoa. Você se incomoda?

Pelo tom do “você se incomoda” entendi o sentido do “tava”. Sustentei o olhar. Não parecia ela. Mas era ela, eu sabia. Eu mesma tinha garantido. Cheguei a uma conclusão que na hora me impressionou mas depois achei meio óbvia: nem sempre alguém se parece consigo mesma.

– Não – respondi seca e mudei de assunto. Tentei nem pensar mais nisso porque ao meu ver era a única resposta possível. Dar piti de ciúme dentro de um dos meus próprios mundos era o cúmulo do inaceitável.

A partir daí as coisas foram piorando. Não que fôssemos menos carinhosas ou brigássemos, mas algo de etéreo se desfazia. Ambas ficamos mais distantes, distraídas. Sabe aquela transcendência de que falei? Se dissolveu totalmente. As idas à praia se tornaram preponderantes e, pior, esquisitas. Ela começou por exemplo a inventar de entrar no mar até bem lá na frente, acenar pra mim, mergulhar e sumir. Eu passava minutos ou mais de hora na areia esperando ela voltar, me recriminando por me sentir inquieta mesmo sabendo que não ia acontecer nada, sem poder acelerar o tempo porque não sabia quando ela pretendia aparecer.

Depois de uma dessas sumidas, a doida chegou de surpresa e deitou em cima de mim. Sempre amei essa pressão de oitenta e poucos quilos sobre meu corpo e aguentava bravamente a falta de ar até o limite. Nessa vez a cara dela ficou colada na minha, os lábios frios na minha bochecha e o olhar virado pro horizonte. Quando eu já quase sufocava ela perguntou:

– Vocês que criaram o mundo, né?

– Dá pra dizer que sim.

Pouco oxigênio no cérebro e ter que começar um papo desses?

– Vocês têm controle sobre o que acontece?

– Até certo ponto.

– Tipo, vocês podem influenciar as pessoas? As minhas decisões, por exemplo?

Menti:

– Não.

Essa pelo visto era a pergunta a que queria chegar, porque depois disso não falou mais nada. Aliviou o peso do corpo. Eu por minha vez respirei fundo e engatei a ladainha:

– O mundo daqui é uma cópia quase perfeita do de lá. Nossa única ação é importar os mecanismos de funcionamento e manter a infraestrutura. Tudo roda de modo autônomo, como aliás toda realidade que se preste.

Mas me calei também porque ela não se mostrava mais interessada. Começou a me morder enquanto eu falava, aquelas mordidinhas molhadas nos músculos dos braços e do pescoço que acabam funcionando pra mim como uma massagem, na verdade a mais maravilhosa possível. Esqueci tudo, medos, contradições, como aliás sempre esquecia, e pelas horas seguintes consegui ainda uma vez mais viver tudo como se fosse antes, a vida original, a Ceci original. Quando voltei pra cá, já tinha decidido o que fazer.

Eu não só posso influenciá-la como posso sê-la. E depois dessa noite não deu mais pra resistir. Assim que acordei na manhã seguinte, acessei a realidade virtual pela primeira vez com a focalização interior na Ceci em terceira pessoa.

Você acha doentio? Assumir a identidade da pessoa que ama? Invadir sua subjetividade, ter total acesso à sua consciência, tomar todas as decisões, sem que nada mude pra ela, sem que ela perceba, sem que ela deixe de ser ela? Eu sabia que tentar isso não daria nada de bom. Sério, devia ser proibido. Ou difícil de fazer, pelo menos. Foi uma parada tão maluca que, mesmo tendo durado só uns minutos, tô até agora tomando coragem pra voltar. Isso deve ter já uns dois anos. Daqui e de lá.